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Friday, December 16, 2005

Lázaro Ramos proclama a consciência negra no cinema


07/01/2003
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Neusa Barbosa
Ninguém combinou nada antes - nem poderia - mas 2002 parece destinado a ser o ano em que o cinema brasileiro descobrirá os atores negros. A descoberta pode parecer estranha, mas acontece ainda pela falta de autoconsciência do Brasil como país multirracial. Tudo começou no Festival de Cannes/2002, onde repercutiram intensamente duas produções com elencos em que atores negros ocuparam papéis dominantes: Cidade de Deus, de Fernando Meirelles (uma das grandes bilheterias nacionais do ano) e Madame Satã, do estreante Karim Aïnouz (co-roteirista de Abril Despedaçado, de Walter Salles). Objeto de polêmica em Cannes por conta de algumas intensas cenas de sexo, o filme de Aïnouz centra-se na figura de João Francisco dos Santos, vulgo Madame Satã, o malandro que reinou na Lapa carioca dos anos 30, interpretado com uma energia extraordinária por um jovem ator baiano, Lázaro Ramos, que nenhum cinéfilo digno deste nome poderá, daqui em diante, ignorar. Nascido em Salvador, em 1978, Lázaro desponta como um dos grandes novos talentos do cinema nacional. Nesta entrevista exclusiva, ainda em Cannes, em maio de 2002, o ator comenta seu personagem no filme de Aïnouz, seus outros trabalhos e os dilemas dos atores negros no Brasil.
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Cineweb - No filme, você parece muito mais velho do que realmente é. Como você conseguiu essa transformação?
Lázaro Ramos - Foi um trabalho de caracterização muito sutil. Junto com a maquiagem, minha interpretação sempre buscou seguir a postura que o Karim [Aïnouz, diretor do filme] indicou no personagem, que era a postura de uma pessoa mais madura. Em cada cena, eu sempre tinha na cabeça: "Sua idade é essa, sua idade é essa". E aí eu ficava observando meu corpo para que o mínimo movimento não parecesse mais jovem, para manter a linguagem corporal naquele tom.
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Cineweb - Dessa série de filmes seus que estão estreando no segundo semestre de 2002, qual foi o primeiro?
Lázaro - O primeiro mesmo foi As Três Marias, que estreou no Festival de Berlim. Antes disso, eu já tinha feito outros três filmes que não são grande coisa. Fiz um que é péssimo, Cinderela Baiana, com a Carla Perez. Não me arrependi de ter feito, porque ganhei muito dinheiro, mas é ruim... Antes, tive uma participação afetiva no filme da Monique Gardenberg (Jenipapo), com meu grupo de teatro, e um terceiro, Sabor da Paixão. Madame Satã é o primeiro como protagonista.
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Cineweb - Você já conhecia o personagem de Madame Satã?
Lázaro - Nada. Morando na Bahia, meu pai me falava que tinha um cara que era um viado que dava porrada em polícia. O que é muito pouco para se dizer sobre ele. O grande conhecimento eu fui ter depois, ao fazer o filme. Nós lemos dois livros e vimos algumas imagens. Vi um curta-metragem chamado Lapa 69 em que ele aparece já no final da vida. E também ouvi a voz dele numa fita cassete. Aí virei um expert.
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Cineweb - Aí você foi dominando o personagem...
Lázaro - Fui dominando, mas a idéia não era imitá-lo. Se eu fosse fazer a voz dele, ninguém ia agüentar o filme. A voz dele era assim o tempo todo [imita uma voz bem anasalada].
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Cineweb - Então essa foi a primeira escolha que você fez.
Lázaro - Na verdade, eu e o Karim fizemos a escolha juntos. Ou então usar essa voz apenas em pequenos momentos, como quando ele vai seduzir alguém. Mas a busca era ser fiel aos sentimentos que o personagem passava no filme.
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Cineweb - Você tem uma experiência que vem de teatro, não?
Lázaro - Minha experiência vem de teatro num grupo chamado Bando de Teatro Olodum, que é um grupo formado por atores negros.
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Cineweb - Aliás, o cinema brasileiro visto no Festival de Cannes [Madame Satã e Cidade de Deus] foi todo feito por atores negros.
Lázaro - Isso é muito importante. Como ator negro, questiono muito esses papéis só marginais que nos são dados no cinema, no teatro, na televisão. Eu só protagonizei algumas produções porque fazia parte do Bando de Teatro Olodum, que é um grupo voltado para um trabalho com atores negros, para abrir mercado de trabalho sobre temas sociais. Só pude ter essas experiências em quatorze espetáculos porque estava lá.
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Cineweb - Que papéis você fez lá?
Lázaro - Fiz Sancho Pança. Não precisavam de um ator negro para fazer Sancho Pança...
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Cineweb - Mas também não tinha porque não ser...
Lázaro - Não, não tinha. O que eu percebo é que às vezes o problema não é ser marginal. Às vezes, só dão ao ator negro um papel de marginal e de empregada doméstica sem substância. O personagem entra em cena para dizer: "Sim, senhora; não, senhora; trouxe seu leite; seu jantar está servido". Quando fazem uma novela em que a empregada é a protagonista, botam uma atriz branca para desempenhar o papel. Em Madame Satã, fazemos papéis de personagens marginalizados, mas aí tem muito material para um ator trabalhar. São personagens vigorosos, onde a gente tem muito o que construir.
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Cineweb - Você enfrentou muito preconceito como ator?
Lázaro - Vivendo no Rio de Janeiro há um ano somente, eu ouvi muitos me dizerem: "O único ator negro bom que eu conheci foi você". Um produtor de elenco entrou no meu camarim numa peça e disse: "Nossa, que ótimo, um ator negro bom, até que enfim". Ou então coisas assim: "Não se preocupa não que a gente agora está trabalhando muito com tipo, tá?". Isso é preguiça de produtor de elenco em procurar... Onde é que Fernando Meirelles [diretor de Cidade de Deus] encontrou aquele elenco todo? A gente pode contar qualquer história. São seres humanos. Todo mundo ama, todo mundo mata, todo mundo morre.
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Cineweb - E o melhor é que não foi uma coisa planejada vocês todos irem para Cannes, com Madame Satã e Cidade de Deus.
Lázaro - Por mérito dos filmes. Ninguém marcou: "Esse aqui vai ser o ano do cinema negro".
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Cineweb - O mais importante é que esses filmes, em particular, são para consumo brasileiro. Há pessoas, principalmente de classe média, que olham para o Brasil e não entendem que este é um país com uma ampla parcela da população negra.
Lázaro - É por isso que ainda falta muito para a gente chegar a ser cidadão, a ser povo. Porque o povo só é povo quando ele se aceita da forma que ele é. Usando uma frase feita, até. Isso só vai enriquecer a auto-estima do brasileiro em geral, não só a do negro.
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Cineweb - Falando em auto-estima, essa foi sempre uma grande característica do Satã. Porque ele era preso, apanhava da polícia mas nunca abria mão da sua auto-estima. Ele sempre se referia a si mesmo como "a minha pessoa". Sempre resistia a ser tratado como lixo. Era um traço positivo, de afirmação dele.
Lázaro - Muito legal mesmo.
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Cineweb - Você se candidatou desde o começo ao papel do Satã?
Lázaro - Não. Eu fiz teste para o Tabu. Aliás, muito desse personagem que existia no roteiro mudou por causa da constituição que o Flávio Bauraqui deu, do respeito com que ele o faz e das nuances que criou. Ele tem uma forma muito mais delicada de construir o personagem do que a prevista inicialmente no roteiro. Contracenando com ele, eu vejo uma dona-de-casa. No meu teste, fiz totalmente diferente. Fiz uma coisa mais rasgada. O Flávio é mais profundo.
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Fotos: Neusa Barbosa/CinewebCineweb - 27/9/2002

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