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Friday, December 16, 2005

Outra Bahia

( Da esquerda para a direita, Wagner Moura, Alice Braga e Lázaro Ramos: protagonistas de uma narrativa em que não há cenas supérfluas. Foto Divulgação)

Em Cidade Baixa, o romantismo à Jorge Amado cede lugar para um lirismo social que recusa o exótico
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Por José Geraldo Couto
Começa a chegar às telas neste mês uma vigorosa safra de filmes vindos do Nordeste. Aos baianos Cidade Baixa, de Sérgio Machado, Esses Moços, de José Araripe, e Eu me Lembro, de Edgar Navarro (em finalização), juntam-se os pernambucanos Cinema, Aspirina e Urubus, de Marcelo Gomes, e Árido Movie, de Lírio Ferreira, para configurar uma invasão renovadora que não se via desde a fase heróica do Cinema Novo, nos anos 60.
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Talvez o caso mais emblemático dessa infusão de vitalidade num cinema brasileiro hoje perigosamente inclinado para a esclerose criativa seja o de Cidade Baixa, pelo frescor e pelo ângulo original com que aborda um tema tão antigo quanto a própria arte: o da amizade masculina abalada pela chegada de uma mulher. Trata-se, para ficar apenas em célebres exemplos contemporâneos, do argumento do conto de Jorge Luis Borges A Intrusa (filmado por Carlos Hugo Christensen) e do filme de François Truffaut Jules e Jim (baseado em romance de HP Roché).
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No longa de Machado, o instável e tenso triângulo se forma já na primeira cena. Numa cidade litorânea baiana, uma garota, Karina (Alice Braga), pede a dois barqueiros, Deco (Lázaro Ramos) e Naldinho (Wagner Moura), carona até Salvador, onde ela tentará viver como dançarina e prostituta. Eles acertam o preço, incluindo o “extra” (Karina terá de fazer sexo com os dois). Estão dados, em escassos minutos, os elementos que o cineasta vai trabalhar, com energia e rigor, ao longo de todo o filme: a amizade, o desejo e, tão importante quanto eles, a necessidade.
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À narrativa substantiva de Cidade Baixa, em que não há cenas frouxas, diálogos jogados fora ou imagens ornamentais, corresponde seu lirismo isento de romantismo e de mistificação. Os personagens se movem num terreno muito concreto, limitado por uma penúria material que os empurra de quando em quando para as fronteiras do crime. Mas nenhum é mera peça de uma engrenagem histórica e social: são seres plenos de impulsos anímicos (nem sempre conscientes) e dilemas morais. De vida, em suma.
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O modo como o ambiente físico e o contexto social aparecem no filme e interagem com o drama de seus personagens impressiona pela sutileza e pela concisão. Não há aqui aquele vício tão difundido em certo cinema brasileiro de colocar a “cor local” à frente e acima da história que se quer contar. Estamos nos bairros pobres de Salvador, mas sem o realce exótico-turístico do Pelourinho, dos batuques e dos acarajés. Não há, embutida nas imagens, aquela ideologia de uma sorridente integração nacional que encontramos nos quadros do Fantástico, nos comerciais do governo ou em tantos filmes da família Barreto.
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O ambiente, em Cidade Baixa, não é adorno, é limite, enquadramento, tanto no sentido físico como psicológico e moral. Nisso, lembra outro grande filme brasileiro recente, Madame Satã, do cearense Karim Aïnouz, em que a velha Lapa carioca despe-se de leituras pitorescas para se apresentar como um conjunto de becos escuros e ameaçadores. Em ambos os filmes, as contradições sociais e raciais do país se traduzem em histórias e personagens singulares. Não por acaso, Aïnouz participou da produção e do roteiro de Cidade Baixa. Não por acaso, também, ambos os filmes são estrelados pelo extraordinário Lázaro Ramos.
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Mais duas coisas, entre tantas, chamam a atenção no longa. Uma delas é a manutenção do foco nos personagens e na tensão latente entre eles, transfigurada ou sublimada ocasionalmente em outras formas de violência: a briga de galos, a luta de boxe, um assalto e até mesmo o sexo.
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Outra característica admirável é a maneira como toda uma teia complexa de relações sociais é sugerida com o mínimo de recursos. Por exemplo: o personagem Dois Mundos (nome maravilhoso, que parece saído de um romance de Jorge Amado) é ao mesmo tempo um comerciante que contrata fretes e um agenciador de pequenos crimes. Tudo isso é mostrado numa única e rápida cena, quando, depois de negar trabalho a Deco, ele levanta a camisa e mostra-lhe a pistola que traz na cintura e que pode ser usada para um “serviço”. Na falta de emprego, Dois Mundos oferece outra via de sobrevivência.
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Já que mencionamos Jorge Amado, cabe lembrar uma circunstância fortuita mas significativa: a jovem atriz Alice Braga, vértice feminino do triângulo de Cidade Baixa, é sobrinha de Sônia Braga, o que nos sugere uma comparação subterrânea entre as bamboleantes personagens amadianas vividas pela tia (Dona Flor, Gabriela, Tieta) e a mais esquiva, contraditória e cheia de arestas dançarina-prostituta, interpretada com bravura pela sobrinha.
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De Dona Flor a Cidade Baixa — obras ambientadas, afinal de contas, mais ou menos no mesmo pedaço do mundo — há todo um percurso de questionamento de mitologias sociais, de aprofundamento crítico do modo de encarar o homem brasileiro e sua circunstância. Não vai aqui nenhum juízo de valor. Jorge Amado é imenso e fundamental. Mas, para uma nova geração de artistas, igualmente necessária, a Bahia não é mais a mesma.
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